Digam-me lá, por favor
Se não é grande injustiça
Deixar grande parte da gente
A sofrer desta cobiça
Houve tempos é certo
Que o trabalho apertava
Que toda a gente fazia
E que ninguém se poupava
Mas agora parece mesmo
Que é um bem raro e escasso
E quem não lhe tem acesso
É bem mais do que um pedaço
Façamos as contas, pois bem
A ver se dão algum alento
Comecemos por saber
P'ra que contam três por cento
Ora este número pequeno
É o que nos dá a fartura
Com este número de pessoas
Se governa a agricultura
No início do século passado
Era pois quase toda a gente
Questiono o meu querido amigo
Como estamos no presente?
Sabe bem que agora estamos
Longe da terra, lamento
Muita gente nunca foi
De onde lhe vem o sustento
O leite já nasce em pacotes
A fruta tem casca plástica
E o frango já sem penas
Nunca fez grande ginástica
Este é o resultado
Da era do industrial
Dá trabalho a toda a gente
Mas é um trabalho banal
A promessa era diferente
"Máquina igual a libertação"
Mas entre trânsitos e escritórios
Vivemos uma prisão
Sempre dentro de caixas
Mesmo de lado para lado
Dentro da fábrica, sem tempo
É tempo de pensar um bocado?
Com estávamos a ver
Se pouca gente precisamos
Para ter o essencial
Porque nos preocupamos?
Podíamos bem abrandar
Parar esta correria
Ver no que havia de dar
Viver mais da poesia
Como seria isso meu caro
De viver como o poeta?
Talvez condensar o mundo
Num rascunho e uma caneta
Contemplar uma flor
Atrasar uma conversa
Apanhar uma boleia
Pegar uma estrada inversa
Qual é a tua pressa
Para onde vais rapaz?
"Como era no princípio"
O caminho é para tráz
Pouco a pouco vamos
Tal crianças a brincar
Passar por baixo das pernas
Para o amigo livrar
Livrar de tantas cadeias
Que nos retiram a vida
Está muito mais que na hora
De curar essa ferida
Basta pois desse medo
Nada nos há-de faltar
Não aceites qualquer coisa
Para o teu tempo entregar
Age com convicção
Emprega bem o teu talento
E assim vais ter uma obra
E por acréscimo o sustento
Pôr todas as coisas por ordem
Cada qual com seu valor
Assim com o melhor no topo
Aguentarás qualquer dor
Salvem todos os prisioneiros
Em todos os sítios são tantos
Sobrevivem-se durante o dia
E chegam a casa aos prantos
Virá o dia é certo
Haverá uma solução
Vem comigo caminhante
Aperta-me cá essa mão.
Declamação por José Carlos Rodrigues